A relação música e política está bastante presente na história da Amazônia.
A revolução da cabanagem no século XIX causou tanto impacto na organização política como na orientação das práticas musicais. Após o florescimento do mercado musical durante o auge da economia da borracha, tivemos um dos maiores movimentos tenentistas na década de 20, acompanhado de uma geração de notáveis artistas críticos que estavam em sintonia com o modernismo e com as vanguardas políticas e estéticas da época. Tanto na revolução cabana como no levante tenentista assistimos o povo pobre mestiço afro-ameríndio tomar o poder em suas mãos construindo uma história heróica de resistência anti-colonial dos povos da floresta.
Durante a luta contra a ditadura burguês-militar fomos os mais lesados em números de assassinatos pela repressão. Mais de 8 mil indígenas foram brutalizados pela ditadura militar que foi derrotada inclusive pelas maiores greves e paralisações nas décadas de 70 e 80 realizadas pelos sindicatos do polo industrial de Manaus. A expressão cultural de resistência deste período foi o nativismo musical construído por todos os artistas dos estados da Amazônia.
Influenciado pelos CPC´s, pelo teatro político e toda a base nacional-popular, o nativismo musical possuía um discurso indigenista, ambiental e anti-capitalista próprio do ambiente geral das esquerdas radicais ou reformistas. O Movimento Roraimeira em Boa Vista, o Movimento Costa Norte no Amapá, os festivais acreanos em Rio Branco, os músicos de Porto Velho foram importantes expressões artísticas de afirmação amazônica diante da resistência à ditadura militar no início da década de 80. Em Belém e Manaus, no mesmo período, a lambada, o carimbó, o beiradão e o boi-bumbá foram produzidos dentro da indústria fonográfica como uma força histórica da maior importância. A música e as artes na Amazônia foram construídas por momentos históricos decisivos como estes.
Atualmente a condição dos trabalhadores músicos amazônicos vivendo nas grandes capitais do sudeste revela contradições agúdas que insistem em se reproduzir dentro da indústria da música dependente e superexploratória.
A revolta dos artistas amazônicos diante da exclusão da música nortista da programação do Rock in Rio é mais do que problematização caprichosa pois oculta desigualdades regionais profundas além do papel deletério do rock na música nacional.
Para entender o que significa o Rock in Rio lembramos que este evento foi criado na redemocratização do país em 1985 pelo empresário Roberto Medina, filho do empresário Abraham Medina. A agência de publicidade Artplan de Roberto foi contratada pela Brahma para fortificar a marca no mercado nacional. Então, impulsionado pelo bem sucedido show de Frank Sinatra no Maracanã, Roberto buscou apoio organizacional de Lee Solters, conhecido produtor que trabalhava com o cantor estadonidense.
Cabe refletir sobre o papel das empresas capitalistas na sustentação do rock. As empresas de cigarros, cervejas e automóveis já eram os principais financiadores dos festivais de rock em Nova York na década de 60. Da mesma forma, o rock sempre esteve associado aos interesses dominantes no Brasil não apenas como ideologia capitalista “rebelde” e individualista para a juventude, mas também como um negócio lucrativo a grandes marcas de cigarro, roupas, empresas de instrumentos e empresas de comunicação apoiadoras do regime militar.
Em 1973, Hilly Kristal queria promover os gêneros do Country, Bluegrass e Blues quando criou o bar CBGB onde as primeiras bandas punks iniciaram sua trajetória. Poucos meses antes em novembro de 1972, Victor Civita, dono da editora abril, órgão apoiador da ditadura militar, criou a revista Geração Pop por onde se divulgavam notícias sobre festivais de rock no Brasil. Neste momento de acirramento da repressão sobre os grupos da luta armada, os festivais de rock já eram divulgados no Brasil como um importante elemento da subjetividade juvenil. Em 1975, captando esta onda mercadológica, a empresa Sousa Cruz criou o festival Hollywood Rock.
Em 1977 a revista de Victor Civita divulgaria o Punk Rock no Brasil dando início a disseminação do estilo branco e anglo-saxão na periferia do capitalismo. Nesta operação o rock negro da irmã Rosetta Tharpe foi transformado em instrumento político-ideológico de empresários reacionários apoiadores da ditadura que neste contexto pretendia enfraquecer os artistas populares de esquerda. Este papel foi cumprido pelo rock que se favoreceu fortemente pela política de isenção fiscal às gravadoras estrangeira na década de 70.
No que tange aos festivais de rock, se o tratamento de humilhação e desrespeito com cachês baixos e péssimas condições técnicas de equipamentos no palco foi uma das marcas destes festivais nas décadas de 80 e 90, hoje em dia, não estamos muito distantes pois as formas discriminatórias insistem em se reproduzir. Apesar do esforço conciliador do empresário Roberto Medina, a manifestação dos artistas nortistas revoltados com a exclusão da programação abriu o debate sobre a condição dos artistas nortistas migrantes no sudeste do país. Embora a burguesia insista em negar as contradições de classe a desigualdade regional do capitalismo brasileiro se impõe. Ainda hoje muitos artistas da região norte migram aos principais centros econômicos do país em busca de melhores condições de vida e trabalho.
A estratégia da organização do evento em assumir um papel político apaziguador contrasta com a ridícula tentativa de criar um espaço cativo “palco Amazônia” para trabalhadores músicos nortistas, conseguindo com isso apenas revelar o caráter segregador do festival. Uma colonização explícita que lembra o tratamento dado aos povos colonizados nos zoológicos humanos exibidos nas capitais imperialistas. Evitando que os artistas nortistas tenham qualquer chance em palcos principais cria-se uma cota para acomodar e espetacularizar os subalternos exóticos.
Essa política de bom mocismo garante a imagem pública positiva do evento ao mesmo tempo em que integra servilmente os artistas nortistas no mercado mainstream. Além disso, a noção de que a Amazônia pode se resumir aos artistas paraenses também é equivocada e injusta pois ignora os valores de dos demais estados da Amazônia.
Certamente, o debate aberto envolvendo nomes conhecidos da música amazônica é muito positivo para repensarmos uma estratégia organizada pois a mera disputa de espaço no Rock in Rio pode servir para legitimar este festival que nunca deixou de ser um instrumento do imperialismo no Brasil. Em troca, façamos nossos festivais aqui mais fortes do que esse engodo sudestino. É necessária uma crítica que não seja apenas integrativa, mas também disruptiva pois lutar apenas por migalhas de representação na casa-grande cultural não leva a construção de alternativas viáveis aos trabalhadores músicos como um todo.
Assumir uma posição de classe é reconhecer a contradição inerente a produção musical capitalista. Além de reerguer o movimento sindical na música, cabe apoiarmos os novos festivais e propor a criação de outros e quantos necessários forem para a construção de caminhos de verdadeira resistência social e cultural. Que a revolução sonora seja também social.
• Bernardo Mesquita é militante da Organização Comunista Internacionalista
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