Do outro lado da linha, aquela mulher não estava sendo agredida. Não naquele momento. Mas foi por muitas vezes. Tantas que o marido já tinha um mandado de prisão. Mas nunca foi parar atrás das grades. Dizem a ela que não foi encontrado. Mas ele sabe onde ela mora. Ela conta que ele invade sua casa, a vigia dormir. Já trocou as fechaduras, mas ele sempre aparece. Resolveu ligar para a Central que recebe denúncias de violência contra as mulheres. “Eu liguei para que, caso eu morra, alguém saiba que eu passei por isso. Alguém que saiba que eu existi”, resumiu.

Há uma maior conscientização da sociedade sobre a importância de denunciar esses casos de violência. O Ligue 180 se tornou uma ferramenta fundamental para que as mulheres busquem ajuda e informações, mas não só elas. Qualquer pessoa que tenha conhecimento de uma situação de violência vivida pode contribuir para a redução das subnotificações de casos de violência doméstica familiar e de qualquer outro caso de violência de gênero contra a mulher”

Ellen dos Santos Costa
Coordenadora-geral do Ligue 180

Ana (*) escutava em silêncio. Na Central de Atendimento à Mulher – Ligue 180, do Ministério das Mulheres, as cerca de 280 atendentes – todas mulheres – que se revezam 24 horas, todos os dias da semana, para manter o serviço ininterrupto, são orientadas a acolher todos os depoimentos. O endereço é mantido em sigilo para garantir a integridade de toda a equipe que lida com situações que envolvem risco e violência.

“As profissionais recebem uma capacitação contínua. Todas as atendentes recebem capacitação semanalmente, com diversas temáticas, desde legislação, tipos de violência, rede de apoio, rede de atendimento, serviço especializado e condução de ligação: quais são as melhores técnicas de atendimento para o tipo de pessoa que está te ligando? Elas também recebem apoio psicológico”, explica Juliana Costa, coordenadora de back office..

DECISÃO DA VÍTIMA – As atendentes da Central são preparadas para seguir um roteiro com todas as informações do que configura uma violência, quais as determinações jurídicas de amparos a essas vítimas, e, ao final, apresentam a proposta de registrar uma denúncia. Mas a decisão final é única e exclusivamente desejo da vítima. Todas as informações são anônimas, inclusive a de terceiros. Após isso, os órgãos competentes dos estados, como secretarias de Segurança Pública, da Mulher, Delegacia da Mulher e Ministério Público são notificados para darem encaminhamento ao caso e oferecerem os serviços de acolhimento do Estado, disponíveis para essas mulheres.

Muitas das vítimas desistem só de ouvirem a palavra “denúncia”. “Essa mulher, muitas vezes, só quer conversar, só quer falar sobre o que está acontecendo. Ela só quer saber para onde pode ir e quando tudo isso vai acabar. Às vezes, ela se assusta quando escuta a palavra denúncia, e aí é preciso encorajá-la”, acrescenta Juliana.

A decisão final cabe somente a quem sofre os maus-tratos. Não raro, as atendentes da Central ouvem uma briga ao fundo da ligação. Outras vezes, o agressor toma o telefone e quer logo saber: “Com quem você está falando?”. As profissionais são orientadas a permanecerem em silêncio e a derrubarem a ligação. Pela segurança delas e pela segurança das vítimas. Tem situações em que a própria mulher desiste e desliga a chamada: por medo, por vergonha, por culpa, até.

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Coordenadora de back office do Ligue 180, Juliana Costa explica que as atendentes da Central recebem capacitação semanalmente, com diversas temáticas, desde legislação, tipos de violência, rede de apoio, rede de atendimento, serviço especializado e condução de ligação

Qualquer pessoa pode denunciar, porém, tendo garantido o sigilo dos dados pessoais. Em 2024, a maioria das denúncias foi feita pela própria vítima, cerca de 83,6 mil. Na sequência, um terceiro, que pode ser um vizinho, um amigo ou um parente, tomou a iniciativa em 48.316 casos. Até mesmo o agressor ligou para comunicar um episódio de violência. Foram 156 registros feitos por eles mesmos, à Central, no ano passado.

“Há uma maior conscientização da sociedade sobre a importância de denunciar esses casos de violência. O Ligue 180 se tornou uma ferramenta fundamental para que as mulheres busquem ajuda e informações, mas não só elas. Qualquer pessoa que tenha conhecimento de uma situação de violência vivida pode contribuir para a redução das subnotificações de casos de violência doméstica familiar e de qualquer outro caso de violência de gênero contra a mulher”, avalia Ellen dos Santos Costa, coordenadora-geral do Ligue 180.

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INFOGRÁFICO | Confira alguns números da Central Ligue 180

OUVIR, ACOLHER, INFORMAR – A história contada no início desse texto foi uma das primeiras que Ana escutou tão logo começou a trabalhar na Central, em julho do ano passado. Foi apenas uma das 691.444 ligações recebidas pelo canal em 2024, número 21,6% maior do que o registrado no ano anterior. Mas ela nunca tirou aquela moça da cabeça. “A voz dela era de desistência”, lembra a atendente. Uma vítima que não tinha pais nem rede de apoio. Restavam a ela a escuta e as orientações de Ana sobre quais os caminhos oferecidos pelo Estado para ajudá-la a fugir do ciclo de violência.

“Fomos treinadas para validar os sentimentos da vítima, porque o que mais as fortalece é serem ouvidas. A gente oferece a denúncia, explicamos que é anônima. Eu, pelo menos, gosto de frisar muito que a gente vai escrever o texto em terceira pessoa, que vou ler para ela, que nada será escrito sem ela ter dito, que todas as informações vão ser fiéis ao que ela me contou. Eu gosto que ela se sinta segura comigo”, diz Ana.

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O Ligue 180 recebe ligações, mensagens de WhatsApp e e-mails: no ano passado, foram mais de 750 mil atendimentos realizados por todos esses canais

ISSO É VIOLÊNCIA? – O Ligue 180 recebe ligações, mensagens de WhatsApp e e-mails. Ao todo, no ano passado, foram mais de 750 mil atendimentos realizados por todos esses canais. Para a ministra das Mulheres, Cida Gonçalves, o aumento significativo no número de atendimentos realizados pelo canal reflete a maior confiança da população brasileira, em especial das mulheres, no Ligue 180, que vem recebendo uma série de melhorias desde o ano de 2023. “Temos investido na capacitação das profissionais que realizam o atendimento e o acolhimento das mulheres, tanto para a informação sobre direitos e serviços da rede, como para o correto tratamento e encaminhamento das denúncias aos órgãos competentes, aumentando a confiança no canal. Além disso, temos intensificado as campanhas para ampliar a divulgação da Central, inclusive o atendimento no WhatsApp”, explica a ministra.

São mais de 2 mil histórias diárias de violência nas quais as protagonistas são mulheres no papel de vítimas. Muitas, porém, desconhecem que estão sendo subjugadas, humilhadas ou que correm risco de morte. Ana conta que algumas dão início à conversa dizendo que os maridos sempre reforçam que elas “estão feias” quando arrumadas para sair. Ou que eles controlam para onde elas vão. Há os que vigiam os gastos e até retêm o cartão de crédito das companheiras. Comportamentos abusivos que elas não têm certeza de ser uma violação de direitos. Por isso ligam e perguntam: “Isso é uma violência?”

Cabe a Ana explicar que sim e apresentar quais são os tipos de agressão que acometem as mulheres, inclusive uma das mais comuns: a psicológica. “A experiência mostra que a agressão psicológica é a porta das outras agressões. Ela abre todos os outros hábitos porque ele a manipula a ponto de ela não confiar em si mesma. E, o mais interessante, é que no relato delas nem sempre começou com agressão física. Elas só não sabiam que estavam sendo agredidas antes”, diz Ana.

Segundo os dados divulgados pelo Ministério das Mulheres, na lista de violações relatadas ao Ligue 180, a maioria se refere, justamente, à violência psicológica (101.007), seguida pela física (78.651); patrimonial (19.095); sexual (10.203), violência moral (9.180) e cárcere privado (3.027). Importante reforçar que, de acordo com a metodologia utilizada pela Central, uma denúncia pode conter mais de um tipo de violação de direitos das mulheres.

A maioria delas acontece há mais de um ano (32.591) e 18.798 indicam que iniciaram há um mês. O relatório do Ligue 180 ainda apontou que 46,4% das denúncias mostram que as vítimas eram agredidas diariamente, o que evidencia a persistência do fenômeno da violência contra as mulheres. Isso quer dizer que, quase na metade dos casos, não se trata de um episódio isolado.

Temos investido na capacitação das profissionais que realizam o atendimento e o acolhimento das mulheres, tanto para a informação sobre direitos e serviços da rede, como para o correto tratamento e encaminhamento das denúncias aos órgãos competentes, aumentando a confiança no canal. Além disso, temos intensificado as campanhas para ampliar a divulgação da Central, inclusive o atendimento no WhatsApp”

Cida Gonçalves
Ministra das Mulheres

PERFIL DOS ENVOLVIDOS – “Ela foi relatando que sofria violência doméstica, que vivia em cárcere privado, que sofria violência psicológica e violência física também. Ela foi contando em detalhes. Estava chorosa. Dizia que a violência psicológica era bem pior do que a física porque o companheiro dela, da época, não a deixava sair, a prendia dentro de casa e ameaçava tirar a guarda dos filhos”, conta Patrícia (*) que, há cinco anos, trabalha na Central. “Ela foi contando assim, pouco a pouco, mas falava como se estivesse acostumada com aquela situação. Porém, ela precisava desabafar”, acrescenta.

Antes de começar o relato, a vítima logo deixou claro que não queria registrar qualquer denúncia. Só desejava mesmo que alguém ouvisse o que estava acontecendo dentro da sua casa, com seu corpo e sua alma. Sofria a violência há tanto tempo, mas ainda assim precisava compartilhar. Ela se sentia sozinha, sem rede de apoio. Não tinha trabalho e dependia totalmente do agressor. Não sabia por onde começar. Então, ligou para o 180.

Patrícia se emociona até hoje quando fala sobre esse atendimento realizado em 2001. Aquela mulher, mesmo tendo recebido todas as informações de ajuda que podia acessar, recusou todas. “Eu não sei como te agradecer. Só precisava falar”, respondeu, no entanto, e desligou.

Patrícia chora porque, apesar de tudo, sente que cumpriu a missão que tem na Central. “Mesmo que ela não quisesse denunciar naquele momento, por meio da conversa que teve comigo, do acolhimento, eu senti que plantei uma sementinha no coração dela. Ela disse que ia pensar em todas as possibilidades do contexto que ela estava vivendo”, alivia-se.

São muitas as razões que dificultam deixar para trás o ciclo da violência. Segundo as profissionais do Ligue 180, é um sofrimento que atinge mulheres de todas as cores e classes sociais. A maioria das denunciantes de 2024 se declararam negras (52,8%), em um total de mais de 69 mil casos. As brancas somam 48.747 denúncias, seguidas pelas amarelas (779) e pelas indígenas (620).

Muitas sentem culpa. Precisam ser convencidas que não mereceram sofrer tais agressões. A que tem menos escolaridade e menos dinheiro teme o desamparo, pois depende do suspeito. A mais instruída e bem-sucedida tem vergonha e tenta explicar o porquê de ser uma vítima. “Eu fico pouco em casa, então, não acontece muitas vezes”, justifica a concursada de um tribunal. “Dessa vez foi pior, mas ele tinha bebido”, tentou defender a outra.

Uma realidade que tem como cenário, em mais de 53 mil casos, um espaço que deveria ser sinônimo de conforto e de proteção: a residência da vítima. Na casa onde vivem juntos a vítima e o suspeito ocorreram, no ano passado, 43.097 das denúncias e no endereço do suspeito, mais de 7 mil.

E os algozes são as pessoas mais próximas, a quem a vítima dedica confiança e mantém uma relação de intimidade. Os dados apresentados pelo relatório do Ministério das Mulheres comprovam que a maior parte dos suspeitos são os atuais companheiros das vítimas (17.915). Ex-companheiros também agridem, ameaçam, humilham. No ano passado, foram 17.083 de denúncias que os consideravam os suspeitos. Familiares, filhos, pais também podem estar no lugar de agressores. Por isso, é importante reforçar: a Central 180 recebe denúncias de qualquer tipo de violência, além da doméstica. Aquelas que são praticadas por um desconhecido, amigos, vizinhos, não importa. O objetivo, sempre, é proteger a mulher e retirá-la da condição de vítima.

(*) Os nomes são fictícios para preservar a identidade das atendentes do Ligue 180

 

 

Fonte: gov.br