Por Herberson Sonkha
Artigo de Lúcio Carril revela raízes históricas da exploração do trabalho no Brasil, do colonialismo ao bolsonarismo
O sociólogo amazonense Lúcio Carril confronta uma das máximas mais disseminadas na cultura ocidental — a de que “o trabalho dignifica o homem” — com argumentos profundamente enraizados na tradição marxista e na crítica histórica da formação social brasileira. Ao afirmar que “o trabalho não dignifica o homem nem a mulher”, Carril desmonta o senso comum e convida à reflexão sobre as estruturas econômicas e políticas que moldaram, ao longo dos séculos, a relação entre trabalho, exploração e dignidade no Brasil. Seu artigo, inserido em um contexto de disputa ideológica com a extrema-direita, articula um diagnóstico potente das origens coloniais da exploração do trabalho no país, traçando uma linha que passa pela escravidão, o capitalismo dependente, o golpe de 2016, a ascensão do bolsonarismo e a atual resistência das classes trabalhadoras. Essa leitura crítica se alinha com os fundamentos teóricos de Karl Marx, que no século XIX já denunciava o caráter alienante e opressor do trabalho sob o capitalismo: “O trabalhador só se sente à vontade no seu tempo de folga, porque o trabalho não é a satisfação de uma necessidade, mas apenas um meio para satisfazer outras necessidades” (MARX, Manuscritos Econômico-Filosóficos, 1844, p. 73).
Colonialismo: A gênese da exploração
Carril localiza no colonialismo a raiz primeira da exploração do trabalho no Brasil, destacando que o processo de colonização foi sustentado sobre a apropriação violenta de corpos e territórios. A escravidão, nesse contexto, não foi um episódio isolado ou um desvio moral, mas o alicerce da acumulação primitiva de capital que sustentou a economia agroexportadora e a formação do Estado brasileiro. Essa análise está em consonância com Florestan Fernandes, que em “A Revolução Burguesa no Brasil” argumenta: “A escravidão não foi um acidente, mas a base material do capitalismo agroexportador” (1972, p. 89). Carril amplia essa perspectiva ao identificar na figura dos “espertalhões” coloniais os inauguradores de um ciclo de violência e desigualdade que se perpetua até os dias atuais. A lógica da exploração, portanto, é estruturante e não contingente, sendo reatualizada sob novas roupagens ao longo do tempo.
A dialética senhor/escravo, como observada por Marx em O Capital (Livro I, 1867, p. 245), transforma seres humanos em mercadorias, negando qualquer possibilidade de dignidade aos oprimidos. A objetificação do corpo negro, submetido à lógica da propriedade privada e do lucro, instituiu uma divisão racial e de classe que permanece como uma ferida aberta na sociedade brasileira. A abolição formal da escravidão, em 1888, não representou uma ruptura com esse modelo, mas sua continuidade sob outras formas. Sem uma reforma agrária, sem acesso à educação ou garantias de cidadania, os trabalhadores libertos foram relegados à marginalização, dando origem a um exército industrial de reserva disponível para o capital nascente.
Esse processo foi analisado por Celso Furtado em “Formação Econômica do Brasil” (1959), ao descrever a transição para o trabalho livre como uma “modernização conservadora”, ou seja, uma mudança formal que manteve as estruturas de poder intactas. Carril se apropria dessa noção para demonstrar como a suposta liberdade do trabalhador brasileiro sempre foi condicionada por um sistema que prioriza a acumulação privada em detrimento da vida. A passagem do trabalho escravo ao assalariado não significou o fim da exploração, mas apenas a sua adaptação às novas exigências do mercado capitalista.
República Velha ao Neoliberalismo: A persistência da Mais-Valia
Durante a Primeira República, com o início da industrialização urbana, o Brasil vivenciou um novo ciclo de exploração. Nas fábricas que surgiram nas grandes cidades, trabalhadores — muitos deles migrantes do campo — eram submetidos a jornadas exaustivas que ultrapassavam as 16 horas diárias, em condições precárias e insalubres. Carril identifica esse momento como a continuidade da lógica colonial em moldes industriais, o que ele nomeia de “salário gerador de fome”. A expressão é potente porque revela a contradição entre o discurso do progresso e a realidade da pauperização operária. Como destaca Michael Löwy: “A burguesia brasileira sempre preferiu superexplorar o trabalho a inovar tecnologicamente” (O Marxismo na América Latina, 2005, p. 54).
O trabalho, assim, permanece como um instrumento de dominação e exclusão. A introdução do trabalho formal assalariado não garantiu dignidade, pois foi operada dentro de um modelo capitalista dependente e periférico, cuja principal característica é a superexploração. A classe trabalhadora, composta majoritariamente por negros, mulheres e pobres, permaneceu à margem das promessas de cidadania e inclusão. Carril nos lembra que, mesmo durante os períodos de crescimento econômico, a desigualdade social se manteve como norma, não como exceção.
A Constituição de 1988, chamada de “Constituição Cidadã”, representou um avanço significativo na formalização dos direitos sociais e trabalhistas. Fruto da redemocratização, ela garantiu conquistas importantes para as classes trabalhadoras, como o direito à sindicalização, à seguridade social e à proteção contra demissões arbitrárias. No entanto, como alerta Carril, esses direitos sempre foram frágeis dentro da lógica capitalista. “Sob o capitalismo, até as leis são reféns do mercado”, afirma. A reforma trabalhista de 2017, que flexibilizou a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), é uma prova contundente de como os interesses do capital prevalecem sobre os direitos sociais. As mudanças impostas precarizaram ainda mais as condições laborais, ampliando a informalidade, a terceirização e a instabilidade contratual.
Golpe de 2016 e o projeto neofascista
O impeachment de Dilma Rousseff, em 2016, não foi um episódio isolado, mas o ponto de inflexão de um projeto de destruição das conquistas sociais. Carril interpreta esse momento como um “golpe de classe”, em consonância com a análise de André Singer: “A elite usou o lawfare para interromper um ciclo de redução de desigualdades” (O Lulismo em Crise, 2018, p. 102). O uso do sistema judiciário como arma política foi parte de uma ofensiva articulada entre setores do Judiciário, do grande empresariado, da mídia e das forças armadas para restaurar o poder pleno do capital sobre o Estado.
A prisão de Lula, em 2018, sem provas materiais que justificassem a condenação, foi outro marco dessa ofensiva. Como revelou a Vaza Jato, o processo foi conduzido com motivações claramente políticas, violando o devido processo legal. Carril aponta que essa judicialização da política atende aos interesses do mercado, que não tolera governos com políticas redistributivas. O desmonte do Estado e a demonização das esquerdas fazem parte de uma estratégia neofascista, que busca consolidar um novo ciclo de autoritarismo e exclusão.
O governo Bolsonaro (2019–2022) aprofundou essa lógica. Carril descreve esse período como o “desmonte violento do Estado”, evidenciado por políticas de destruição ambiental, cortes em programas sociais, ataque às universidades públicas, militarização da política e incentivo às milícias armadas. A reforma da Previdência, aprovada em 2019, é um exemplo da política de espoliação descrita por David Harvey: “acumulação por espoliação” (O Novo Imperialismo, 2003, p. 137). Trata-se da extração de valor por meio da expropriação de direitos e da mercantilização da vida.
8 de Janeiro de 2023: O Golpe em câmera lenta
A tentativa de golpe em 8 de janeiro de 2023, com os ataques às sedes dos Três Poderes em Brasília, financiados por empresários ligados ao bolsonarismo, representa a culminância dessa ofensiva autoritária. Carril interpreta esse episódio como a tentativa final de instalar um “Estado fascista”, conforme alertado pelo filósofo Vladimir Safatle: “O fascismo, antes de ser uma ruptura institucional, é a naturalização da exceção como regra” (O Circuito dos Afetos, 2016, p. 89). O que se viu foi a expressão violenta de uma elite que se recusa a aceitar a democracia quando ela favorece os interesses populares.
A resistência como horizonte
Diante desse cenário, Carril aponta a organização popular como única via para a construção da dignidade. A luta pela dignidade do trabalho não se resume à defesa de direitos formais, mas exige a superação da lógica capitalista que transforma tudo em mercadoria. A vitória de Lula em 2022, com mais de 60 milhões de votos, demonstrou a força da resistência popular, mesmo diante da ofensiva autoritária. Essa vitória não é um ponto de chegada, mas um novo ponto de partida. Como escreve Angela Davis: “Não aceitamos a naturalização da opressão. A história é uma janela de possibilidades” (A Liberdade é Uma Luta Constante, 2018, p. 22).
Carril, ao desafiar a máxima do senso comum de que “o trabalho dignifica o homem”, nos convida a pensar para além das aparências, a compreender o trabalho como espaço de disputa e, sobretudo, a reconhecer que dignidade não é uma dádiva do capital, mas uma construção coletiva que emerge da resistência. O trabalho só será digno quando deixar de ser instrumento de opressão e se tornar expressão de liberdade. E isso só será possível em uma sociedade onde o valor da vida esteja acima do valor de troca.
REFERÊNCIAS
MARX, Karl. Manuscritos Econômico-Filosóficos. Boitempo, 1844. MARX, Karl. O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I. Boitempo, 1867. FERNANDES, Florestan. A Revolução Burguesa no Brasil. Zahar, 1972. FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. Companhia Editora Nacional, 1959. LÖWY, Michael. O Marxismo na América Latina. Fundação Perseu Abramo, 2005. SINGER, André. O Lulismo em Crise. Companhia das Letras, 2018. DAVIS, Angela. A Liberdade é Uma Luta Constante. Boitempo, 2018. HARVEY, David. O Novo Imperialismo. Loyola, 2003. SAFATLE, Vladimir. O Circuito dos Afetos. Autêntica, 2016.